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Projetar para reformar: alternativas para democratizar e melhor ocupar o centro de Porto Alegre

Adaptar edifícios em estado de abandono para retirar a população das ruas ou de áreas de risco é um dos maiores desafios dos centros urbanos em todo o país

“Direto de viver. Direito de morar”. Foto: CAU/RS

A casa é geralmente o lugar da nossa primeira rede de afetos. São pessoas e memórias conectadas a ambientes, em menor ou maior escala: o próprio quarto ou o quarto dos pais, o pátio, as brincadeiras e os amigos da rua, o mercadinho da esquina, os parques e praças mais próximos. No entanto, é preciso reconhecer que, assim como essa história, ter um lugar para chamar de lar ainda é um privilégio.

“A casa”, cantiga de roda eternizada por Vinicius de Moraes, brinca com a ideia de uma casa que de engraçada não tinha nada: “ninguém podia entrar nela não, porque na casa não tinha chão”. A canção revela a realidade de muitos brasileiros, que na ausência de moradia de qualidade, submetem-se a situações de risco para a garantia do direito básico, assegurado pela Constituição Federal. O Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul (CAU/RS) conversou com duas arquitetas e urbanistas que trabalham e pesquisam sobre habitação social e Assistência Técnica, serviço prestado por arquitetos e urbanistas para execução de obras e projetos.

Adriana Sabadi, arquiteta e urbanista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), realizou uma pesquisa no Centro Histórico de Porto Alegre e defendeu, em seu trabalho final de graduação, novas formas de pensar a ocupação de imóveis vazios, subutilizados e/ou abandonados no centro das cidades. Karla Moroso, arquiteta e urbanista formada pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e mestre em Planejamento Urbano e Regional pela UFRGS, trabalha na ONG CDES – Direitos Humanos e é sócia do escritório AH! Arquitetura Humana.

MAIOR ABANDONADO

Existem muitos prédios subutilizados ou abandonados no centro de Porto Alegre. Adriana Sabadi mapeou, a partir de observação direta, 49 imóveis que não cumprem sua função social no Centro Histórico. O recorte da pesquisa percorre a Av. Borges de Medeiros, passando pelas ruas Duque de Caxias, Riachuelo e a tradicional Andradas.

Adriana comenta que existem “categorias de abandono”. Os subutilizados são aqueles imóveis que ainda possuem algum uso, mas grande parte de seus pavimentos está desocupada. É o caso de muitos prédios da capital: comércio nos andares baixos e uma maioria das salas vazias. Os vazios, por sua vez, são os que não cumprem sua função social, nem em parte. E o estado de abandono releva a falta de manutenção das edificações, com vidros quebrados, sujeira, reboco ou pintura gasta. Deixados à própria sorte, transformam-se em ruínas com o passar dos anos. “Quase sempre um imóvel em estado de abandono é um imóvel vazio”, comenta a pesquisadora.

Karla Moroso enfatiza que muitos dos prédios subutilizados, vazios ou abandonados são propriedade privada e também pública, pertencentes ao patrimônio público, como o que era ocupado pelos Lanceiros Negros em Porto Alegre. O prédio do governo do Estado, localizado na esquina das ruas General Câmara e Andrade Neves, no centro da capital gaúcha, foi alvo de uma controversa ação de reintegração de posse em junho de 2017. “Até hoje o prédio está sem gente e as pessoas que moravam lá sem casa. As ocupações são verdadeiros instrumentos de denúncia e cumprem um importante papel político ao revelar a desigualdade no acesso à terra e à moradia, bens indispensáveis para o desenvolvimento da vida”, destaca a arquiteta.

Antigo prédio ocupado pelos Lanceiros Negros é propriedade do Governo do Estado e está desocupado desde sua reintegração de posse. Foto: CAU/RS

TANTA GENTE SEM CASA, TANTA CASA SEM GENTE

Quando falamos sobre a relação entre público e privado, não podemos menosprezar a força do mercado, que dita suas próprias regras na ausência da ação do Estado e do Executivo Municipal. Muitos dos imóveis mapeados por Adriana possuem placas de “Aluga-se”. Segundo ela, houve um “boom imobiliário” no ano de 2009 que aumentou significativamente o valor do aluguel e levou a população de baixa renda a encontrar na periferia uma opção viável, apesar do aumento do gasto com transporte público. Além disso, o programa Minha Casa Minha Vida resultou na oferta de moradias periféricas de baixa qualidade para famílias de baixa renda.

A função social das edificações é diretamente afetada pela falta de regulamentação e instabilidade do valor do aluguel, assim como a disseminação da ideia “fuja do aluguel”. No 4º Distrito de Porto Alegre, como exemplo, estão 20% – cerca de 7 mil – dos 40 mil imóveis que se encontram em estado de abandono na capital gaúcha, conforme dados do IBGE (2010).

“Para o mercado imobiliário não interessa se o imóvel cumpre ou não sua função social, pois está voltado para quem possui alto poder aquisitivo. Esse é o grande problema enfrentado pelas cidades no Brasil. Há cada vez mais pessoas ocupando ruas, edifícios em condições precárias, como o que desabou no começo de maio em São Paulo, ou áreas de mananciais, que não possuem valor para o mercado”, complementa.

Adriana conta que um dos padrões mais assustadores observados durante sua pesquisa foi a quantidade de imóveis de estilo eclético que mantém apenas a fachada preservada para dar lugar a estacionamentos. Enquanto isso, o número de moradores de rua quase dobrou nos últimos três anos em Porto Alegre, o que é muito sintomático, segundo ela.

“Há ocupações em áreas centrais e em áreas de risco periféricas. Ao mesmo tempo, há cada vez mais moradores de rua. Por outro lado, há inúmeros edifícios vazios com boa infraestrutura”, constata, trazendo exemplos de outras cidades que conseguiram diminuir o déficit habitacional com consciência e iniciativa do Poder Público.

ALTERNATIVAS

A desigualdade social no Brasil é uma batalha a ser vencida. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Pnad Contínua revelam que metade dos trabalhadores tinha renda média inferior a um salário mínimo em 2016. Nesse sentido, a regulamentação do valor do aluguel é um dos principais instrumentos na luta contra a gentrificação. Em Berlim, capital da Alemanha, o aumento do aluguel expulsou alguns moradores de determinados bairros. O Poder Público atuou no sentido de limitar o reajuste e ampliar os subsídios para moradias sociais. Na França, cada nova construção possui uma cota destinada à moradia social.

Karla Moroso comenta que a aplicação de instrumentos semelhantes no Brasil está prevista no Estatuto da Cidade e também no Plano Diretor de Porto Alegre: “Instrumentos como o IPTU Progressivo no Tempo estão previstos há 10 ou 15 anos e nunca foram regulamentados”. Essa medida combate a ociosidade dos imóveis. “Quando um imóvel está ocioso, o proprietário é notificado para que apresente um projeto de ocupação até determinado prazo. Casa isso não aconteça, a alíquota do IPTU aumenta progressivamente”, explica Adriana. O instrumento já foi adotado pela Prefeitura de São Paulo.

A Política de Aluguel Social também é uma intervenção interessante, prevista no Plano Nacional de Habitação. Outra ideia diz respeito à Produção Social da Moradia, como ocorre com o Assentamento 20 de Novembro em um prédio na Rua Dr. Barros Cassal em Porto Alegre. A Confederação Nacional das Associações de Moradores (CONAM) e o Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) desenvolvem um Minha Casa Minha Vida Entidades por meio do Sindicato dos Arquitetos no Estado do Rio Grande do Sul (SAERGS) com patrocínio do CAU/RS.

Assentamento 20 de Novembro em Porto Alegre. Foto: CAU/RS

PROJETAR PARA REFORMAR

“Durante o Fórum Social Mundial de 2002 ocorreu uma ocupação no prédio da SulAmérica Seguros, localizado no centro de Porto Alegre. Na pauta, estava a reforma do prédio e de outros três de propriedade do estado e do Governo Federal. Hoje, um deles abriga desde 2005 a Comunidade Autônoma Utopia e Luta”, conta Karla. A recuperação de muitos imóveis foi feita a partir do Programa de Arrendamento Residencial (PAR), que beneficiava famílias com renda de três a cinco salários mínimos.

Essas iniciativas foram provocadas pelos movimentos populares de luta por direito à moradia, que sugerem outra forma de produzir a cidade e exigem dos governantes outros arranjos para produzir moradia. Nessa perspectiva, a produção padronizada e em escala de moradia – do projetar em uma página em branco – sai de cena e dá lugar ao projetar para reformar. É o desafio de adaptar pré-existências, ajustar, avaliar, arriscar e propor novas formas de morar que se adaptem ao espaço e suas condições. Aí entra a Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social.

A Lei nº 11.888/2008 diz que assistência técnica para população de baixa renda é um direito. No entanto, um direito sem regulamentação. Significa que faltam políticas, programas e projetos que garantam sua “materialidade”, para que suas prerrogativas se transformem, de fato, em moradia. “Poderíamos dizer que, na ausência do Estado ou na ineficiência de suas ações, temos que apostar em iniciativas autônomas”, mas isso não basta, alerta Karla. “Não tem como falar em garantia de direitos se o responsável pela sua realização, o Estado, não dispor de dinheiro, estrutura e profissionais adequados”.

Assentamento Urbano Utopia e Luta no centro da capital gaúcha, localizado em uma das mais tradicionais avenidas da cidade, a Borges de Medeiros. Foto: CAU/RS

ARQUITETO COMO INSTRUMENTO

O centro das grandes cidades não precisa de “revitalização”. Essa ideia, via de regra, tem como objetivo a “limpeza urbana” através de medidas que valorizam a área, no entendimento do mercado imobiliário, e geram o que chamamos de “gentrificação”. “O Centro Histórico de Porto Alegre precisa de democratização de melhor ocupação”, salienta Adriana Sabadi. A ideia pode ser estendida aos demais centros urbanos do país.

“Quando falo em democratização, refiro-me à ocupação do espaço por pessoas de diversas rendas, que trabalhem ou apenas optem por morar no centro. Com isso, espero que o fator ‘localização’ seja mais importante que o fator ‘mercado’. Quando falo em melhor ocupação, refiro-me ao preenchimento dos ‘vazios urbanos’, através da reabilitação de edifícios com potencial para moradia, além de estabelecimentos comerciais no térreo. Também proponho o incentivo à caminhabilidade e ao transporte público a partir do conceito de Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável (DOTS), tornando o centro ainda melhor”, diz a pesquisadora, que foi orientada pelo professor João Rovati, do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR) da UFRGS, e destaca a importância da pesquisa para o levantamento de dados e aprofundamento de discussões como essa.

Karla Moroso coloca que a construção do conhecimento a partir das lutas e das práticas dos movimentos populares é um princípio: “Eu acredito no arquiteto como um instrumento dessas lutas. Nossa atuação com eles é para transformar a realidade das cidades e dessas pessoas”.  As ideias trazidas pela arquiteta resultaram de um bate-papo entre a assessoria técnica e o movimento popular. Ela destaca o convite feito a Ezequiel Morais, no MNLM, para responder em conjunto as questões trazidas pelo CAU/RS.

Utopia e Luta na Av. Borges de Medeiros. Foto: CAU/RS

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