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O que precisamos aprender (ou relembrar) com a Jane Jacobs?

Jane Jacobs. Foto: Divulgação

Quando falamos em cidades mais humanas, um nome de referência é o de Jane Jacobs. A jornalista estadunidense foi pioneira na proposição de alternativas ao modelo vigente de cidades nos Estados Unidos: questionou o culto ao automóvel, o desenvolvimento de subúrbios com casas individuais afastados do centro da cidade e lutou pela formação de centros urbanos mais próximos e acessíveis para as pessoas. Sua obra mais conhecida, Morte e Vida nas Grandes Cidades (1961), provocou debates dentro e fora do meio acadêmico sobre a relação das pessoas com a urbe. Uma das bandeiras da escritora era, justamente, conquistar mais abertura para discutir coletivamente as decisões tomadas sobre a cidade e que afetam toda a população.

Pensando nessas mudanças de paradigma, a Arquitetura e o Urbanismo são as áreas que mais têm a contribuir. É justamente a partir de uma perspectiva mais ampla de cidade que os arquitetos e urbanistas podem influenciar questões como segurança, relações sociais, qualidade de vida, sustentabilidade e mobilidade. Conforme Jane Jacobs, compreender a sociedade, seus hábitos, relações e atividades é extremamente necessário para ter bons resultados na mudança de espaços urbanos. Não se pode, para ela, ficar restrito aos aspectos técnicos da profissão sem buscar uma formação mais integrada ou aplicar modelos genéricos sem levar em consideração as particularidades de cada lugar.

Para Ana Paula Faria, coordenadora do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), as ideias de Jane Jacobs, que surgiram há mais de 50 anos, ainda têm muita relevância para a discussão sobre espaço urbano. Ela aponta duas posturas em empreendimentos urbanos nas últimas décadas que vão contra o ideal de cidades mais humanas. A primeira é a desvinculação dos espaços públicos e privados, que acontece com a criação de regiões segregadas dentro da cidade – como no caso dos condomínios fechados – e também pela escala das edificações, que reduz o contato físico e visual entre o prédio e a rua – como no caso das torres com a base de fachada cega das garagens. A segunda é o que pode ser chamado de “urbanismo de cenário”. Trata-se dos processos de espetacularização do patrimônio histórico e cultural visando um público seleto, geralmente sem vínculos efetivos e afetivos com o local. “No momento em que ambas as posturas são comuns, relembrar que a qualidade e segurança dos ambientes urbanos estão intimamente vinculadas ao convívio de usos diversificados, e da criação de laços de vizinhança e pertencimento é fundamental”, afirma Ana Paula.

O coordenador do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Passo Fundo (UPF), Carlos Leonardo Szilagyi, também vê como importantes as ideias e debates provocados por Jane Jacobs desde a década de 1960. Ele acredita que o modelo atual de cidade falha por tentar minimizar relações sociais e de mobilidade complexas, que afetariam não só nossa vida prática, mas também nossa ética, “uma vez que nossos paradigmas e dogmas sociais baseiam-se em uma ideia de segregação e isolamento, fazendo com que optemos por morar em condomínios fechados, isolados da cidade, ao invés de encarar os erros do nosso presente e, em comunidade, transformar as relações urbanas existentes”, argumenta Szilagyi.

Quanto às soluções possíveis para mudar essa cultura na sociedade, os dois coordenadores de cursos das universidades do interior do Rio Grande do Sul concordam que se trata de um processo gradual, em que cada atitude individual tem seu peso. “Cada ação isolada na cidade, conceituada nos preceitos humanistas de Jane Jacobs, representa um tijolo na construção desta ideia, que, aos poucos, transforma o cotidiano das pessoas e, como em um efeito dominó, todos os paradigmas são, um a um, desmontados e reconfigurados para este novo padrão urbano”, afirma Carlos Leonardo Szilagyi.

Ana Paula Faria destaca, ainda, o impacto do trabalho do arquiteto e urbanista ao provocar ou atrasar mudanças efetivas. “A decisão de fechar a frente de um lote com um muro ou uma fachada cega terá repercussões na segurança e na qualidade do espaço urbano e, quando isso é somado a outras decisões similares, será capaz de impactar as caraterísticas de um bairro inteiro”, aponta Ana Paula.

Se depender dos estudantes de Arquitetura e Urbanismo, o surgimento de projetos que priorizem as relações entre a população e a cidade deve aumentar. “Nas últimas duas décadas se observa uma crescente valorização das questões urbanas por parte dos alunos. O envolvimento se observa tanto no interesse em discutir questões urbanas nas disciplinas, quanto na maior frequência na escolha do tema urbano para realizar o trabalho de conclusão de curso”, observa Ana Paula Faria, coordenadora do curso na UFPel. A realidade é semelhante em Passo Fundo, como afirma Carlos Leonardo Szilagyi. Segundo ele, no último semestre, 50% dos trabalhos de conclusão de curso feitos pelos alunos tinham ligação direta com questões urbanísticas.

Foto: Fred W. McDarrah/Getty Images

Caminhar com olhar de Jane Jacobs

Uma iniciativa interessante para quem se identifica ou tem curiosidade pelas ideias de Jane Jacobs é a Jane’s Walk. O projeto começou em 2007, no Canadá, onde a escritora viveu por muitos anos, se expandiu para os Estados Unidos, e desde então já aconteceram em várias cidades ao redor do mundo. As caminhadas são organizadas de forma colaborativa, por qualquer pessoa interessada em guiar o passeio, e divulgadas no site oficial da Jane’s Walk.

Sete cidades brasileiras já receberam um ou mais eventos e, neste mês, outras três cidades terão as caminhadas acontecendo pela primeira vez. O objetivo é colocar a população em contato entre si e com a cidade, minimizando barreiras sócio-espaciais, e provocar a discussão sobre o lugar onde vivem. O Rio Grande do Sul nunca recebeu caminhadas do projeto, e também não tem eventos programados para este ano. Quem sabe pode ser você a organizar o primeiro? Saiba mais em http://janeswalk.org/brazil.

Jane Jacobs (1916-2006). Foto: Phillip Smith

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